quinta-feira, 8 de julho de 2010

Querida Matilde








Querida Matilde:

Escrevo-lhe hoje apesar de só a ter encontrado ontem para lhe dizer que lamento não a ter conhecido há mais tempo. Mas já sabe como é: os encontros mágicos entre os humanos são meras distracções de deuses inseguros, e portanto calhou eu ter chegado aqui no instante em que a Matilde se foi embora.

Ouvi-a dizer "Hoje, que posso olhar para longe, vejo que vivi com a poesia" e só esta frase magnífica deixou-me presa às suas palavras. Ouvia-falar da sua amizade de uma vida inteira com Maria Keil como uma menina de seis anos o faria. "Ainda hoje brincamos juntas. Ela é pura, rebelde". Também a ouvi falar de um homem "Sua Excelência, tão bonito, tão sofredor" e fiquei refém da forma como três palavras definem um perfil. Escutei as histórias de um tempo em que "o Campo Grande era, de facto, um grande campo" e o Vitorino Nemésio, angustiado com a escrita de Mau Tempo no Canal, lia excertos aos amigos debaixo das árvores e perguntava "o que é que vocês acham?".

Eu não fui uma das crianças que cresceu embalada pelas suas histórias, que, dizem-me, são a razão pela qual a literatura infantil é hoje vista sem ponta de condescendência. Mas mal posso esperar para descobrir a "estrada fascinante" que os seus livros propõem e os desenhos da Maria Keil ilustram.

Encontramos-nos lá?

(Homenagem a Matilde Rosa Araújo 1921-2010)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Rotinas



Take 1


Acordo todos os dias de manhã para uma rotina definida, para um dia bastante previsível. Sei onde vou estar desde o princípio do dia até ao meio da tarde. Tenho um emprego. Tenho um trabalho. Sei que no final do mês tenho um salário. Por causa disso, sei que não me vai faltar comida na mesa nem nenhum bem essencial. Sei que as minhas contas vão ser pagas e que tudo funcionará à minha volta se eu carregar nos botões certos: faço e recebo chamadas, encho e esvazio máquinas de roupa, tomarei banhos e a minha casa estará limpa e iluminada à noite. Andarei de carro para fazer compras e tratar de assuntos rotineiros. Terei tempo para dar passeios, almoçarei e jantarei fora algumas vezes, terei dinheiro para comprar livros e filmes e jornais, irei ao cinema várias vezes ao longo do mês, frequentarei o ginásio, há pelo menos um fim de semana em que sairei da cidade, porque preciso de ver mais mundo para conseguir aguentar a vida que tenho.

Take 2

Acordo todos os dias surpreendida por ter conseguido dormir, é um mistério para mim. Sonho muito ultimamente, os meus sonhos são as minhas idas ao cinema, há que tempos não compro um bilhete para ver um filme a sério. Obrigo-me a sair da cama, pouso os pés no chão e procuro os chinelos com os olhos ainda fechados. Demoro sempre um instante a abri-los, esta é uma das coisas que posso fazer, o luxo mínimo de quem não tem emprego. Faço isto todos os dias à mesma hora, a rotina ajuda a simular a normalidade, isso acalma um pouco este pânico morno que vive no meu estômago.
Começo aqui a contar os minutos até o sol se pôr. Decido neste instante o que vou fazer hoje: centro de emprego primeiro (não vou comer nada antes de sair, para não ficar agoniada como de costume); banco depois, o gerente diz que tenho a casa por um fio (desta vez não vou deixar que ele fale comigo com aquele tom); compras no mini-preço (não posso esquecer de levar os papéis dos descontos); casa à tarde, os homens da EDP vêem desligar a luz (de certeza que vou chorar).

Amanhã é sábado, vai ser mais fácil. Vou sair de casa cedo para evitar os vizinhos e vou caminhar até aquele monte e vou subi-lo mesmo até ao topo e vou ficar lá sentada até o frio me mandar embora.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Batismo de cidadania vs banho de realidade





Imaginem um rapaz de 13 anos, magrinho e irrequieto, a entrar na Loja do Cidadão dos Restauradores. Vai levantar o seu primeiro Cartão do Cidadão. Está entusiasmado com o momento que está a viver, porque simbolicamente, o Cartão representa o primeiro instante de afirmação de sua identidade social.
Vai poder abrir uma conta bancária. Viajar para fora do país, mesmo para países longínquos. Passa a existir "como os adultos" em sociedade.
Vejam-no a passar os olhos pela sinalética do espaço, ansioso, à procura da placa Cartão do Cidadão.
Sobe as escadas a correr, depara-se com um aglomerado de pessoas com um ar apático, encostadas ao corrimão. Há crianças no chão e a chorar ao colo dos pais. Há idosos sentados e pessoas que lhe invejam a posição, mas como só há quatro bancos, se resignam a ir mudando de pé enquanto aguardam.
Olha para o lado e vê um espaço luminoso, amplo, limpo, com pelo menos sete funcionários com um ar competente a atender pessoas com gentileza e pensa: "Deve ser aqui". Aproxima-se. Não, é a EDP. Onde está o Estado português?
Está ali ao lado, num recanto com a jovialidade de uma funerária onde três sonolentas senhoras produzem uns vagos gestos de enfado perante uma plateia de olhares vazios que aguardam que mais um digito caia ao som da corneta. "67". Alguém se levanta, o rapaz dirige-se à máquina das senhas e carrega num botão. Sai o número 163. "163?". O rapaz olha incrédulo para o papel. Acaba de descobrir onde vai passar as primeiras horas da sua pré-condição de cidadão português.

Foram quase três horas de espera, ao longo das quais o deslumbramento deste novo cidadão se esvaiu lentamente como um velho balão de hélio. Quando os três dígitos mágicos finalmente se uniram no número desejado, o rosto animou-se num suspiro de alívio.
Cumpriu os rituais da sua entronização cívica com o sorriso apagado e saiu para a rua com a pressa de quem acaba de acordar de um pesadelo demasiado real.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Cidades invisíveis em cápsulas do tempo



Li ontem que uma das iniciativas do FITEI deste ano é dar o nome de um cidadão anónimo a uma rua da cidade do Porto
. Por instantes, encontrei na realidade urbana do Porto um vislumbre daquela engenhosa e arrojada criatividade que me habituei a admirar nos catalães, mestres na arte de fazer uma cidade respirar através dos pulmões dos que lá vivem.

Exemplo I

Recentemente, perante a contingência de ter de alterar o traçado da carismática Via Diagonal, fizeram o impensável: puseram o assunto à consulta pública. Em vez de se encerrarem em gabinetes camarários produzindo sigilosas cogitações sobre o que poderia vir a ser o futuro da cidade e dos seus cidadãos, deixando cair, aqui e ali, umas misteriosas dicas jornalísticas sobre o que estava a acontecer nos corredores do poder, decidiram perguntar às pessoas o que é que elas queriam.
Um exercício admirável de democracia urbanística: o espaço é público, a decisão também. Criaram um site com duas propostas possíveis de traçado, disponibilizaram informação, construíram cenários com as várias hipóteses. E pediram às pessoas para votar. Não houve economia na polémica, nem fuga da opinião: defensores, detractores, urbanistas, arquitectos e simples cidadãos cruzaram argumentos, criaram campanhas de rua, escreveram-se longas prosas com adjectivos gordos, os jornais abriram-se às réplicas e tréplicas dos comentadores e analistas, uma trepidação cívica invadiu a cidade.

Exemplo II

No momento em que escrevo este texto, os cidadãos de Barcelona estão a escrever mensagens sobre a sua cidade para enviarem para o futuro numa cápsula do tempo que só vai ser aberta em 2159.
Conseguem imaginar? Algures, dentro de século e meio, quanto todos formos passado, numa cidade digna de um delírio de Italo Calvino, os ainda não nascidos habitantes de Barcelona vão saber como é que os seus conterrâneos imaginavam o lugar onde eles então vivem. Magistral projecção de vida, sublime ensaio de imortalidade, a cápsula do tempo do povo de Barcelona é, na verdade, um diálogo intemporal sobre as ficções que uma cidade inspira nos seus habitantes. Sabemos nós amar assim uma cidade?

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Moro num país bipolar





Portugal é o caminho mais curto entre o melhor do futuro e o pior do passado. É o país dos 4 telemóveis por família e aquele em que o maior empregador é a burocracia. Tem a sua força laboral entregue a uma maioria de patrões que nunca completou o secundário, mas exporta uma alta percentagem dos cientistas que povoam os melhores laboratórios do mundo.
Aqui eu posso sair de casa, sentar-me numa esplanada de um jardim público, pedir um café, abrir o meu computador e ficar a navegar na net alegremente como se o wireless nascesse nas árvores; ou posso entrar numa Loja do Cidadão e encontrar-me, numa questão de segundos, a viver um filme de terror entre funcionários públicos entorpecidos por anos consecutivos de "és pago para fazer e não para pensar".
Se me pedissem para escolher uma instituição-síntese desta bipolaridade esquizofrénica, eu apontaria a primeira sala de audiências que encontrasse. Recorrer à justiça nacional é entrar no labirinto do Minotauro, para um sacrifício penoso e invariavelmente, inglório. É uma viagem de que ninguém sai incólume a um micro-cosmos de liturgias bafientas e prerrogativas sem escrutínio que insiste em comunicar com o mundo através de um dialecto inescrutável e, portanto, elitista.
Há dias pude ler, na íntegra, um parecer da Procuradoria-Geral da República sobre uma questão relativamente trivial relacionada com a obrigatoriedade dos livros de reclamações. Alguém, na PGR, produziu 42 (!) páginas de elípticas considerações legais tentado perscrutar o pensamento do legislador através das palavras que ele reuniu no preâmbulo e no corpo do decreto-lei.
Artigo a artigo, por vezes, palavra a palavra, o parecer é um extenuante exercício de interpretação semântica digno do mais purista dos linguistas, um rendilhado delirante de citações, remissões, excertos, enxertos. Arte de obstrução pura. Uma competentíssima inutilidade. Não há fio de Ariana que nos guie. Não há Teseu que nos salve.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Há ruas que só têm um lado


Ontem vi uma reportagem num telejornal de canal aberto sobre o esforço que a cidade da Covilhã estava a fazer para receber a selecção nacional a caminho de ali fazer um estágio: pintou passadeiras, arranjou passeios, alcatroou ruas. O trabalho jornalístico, inócuo e objectivo, era tecnicamente irrepreensível, mas passava completamente ao lado da pergunta incontornável que ficou por fazer: porque razão a Covilhã não fez as obras, pelos vistos necessárias, noutra altura. Ou, reformulando, porque razão foi preciso a selecção visitar a cidade para as fazer? O país autárquico está cheio até à náusea de exemplos destes: coisas bem feitas pelas razões erradas. Ou coisas apenas meio bem feitas.
Sempre procurei olhar para a cidade onde vivo como olho para as cidades onde sou estrangeira. Cá é como se dormisse de olhos abertos e o que vejo me convide a olhar para dentro, mais do que para fora. Lá fora, os meus olhos abrem-se como os de um doente saído de coma, que reencontra, mas não reconhece, naquilo que é estranho, o que lhe é familiar.
É com essa percepção limpa, aberta, livre da cegueira que vem do excesso de ver que às vezes me entretenho a olhar para Lisboa.
Sem essa miopia, consigo ver o quanto a organização da cidade reflecte a atenção selectiva que as entidades responsáveis dão aos espaços urbanos - porventura, a mesma distinção que fazem com as pessoas que os habitam.
Na Segunda Circular, por exemplo, uma das vias mais congestionadas de Lisboa, viver nas bermas deve ser um pesadelo. No entanto, é na aproximação ao Campo Grande que se repara que o pesadelo é amortecido para os que vivem do lado esquerdo (uma urbanização de luxo), mas não para os que vivem do lado direito (um bairro social/cooperativo), que não têm direito às barreiras de insonorização de que gozam os vizinhos da frente.
Na Avenida Brasília, cujo piso lembra uma rua libanesa, andaram recentemente homens e máquinas a tapar buracos e a espalhar uma nova membrana de alcatrão ao longo de uma parte do corredor. Qual parte? A parte que dá acesso ao Hotel Altis Belém e ao lado mais relevante turisticamente falando. O resto foi ignorado.
Nas cidades de algumas sociedades, há ruas que só têm um lado. Há autarcas que só têm uma forma de olhar para o espaço. E jornalistas que se esquecem de olhar para o mundo como se fossem estrangeiros.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Tudo o que é nacional é opaco


Ouvi há dias na SIC o Costa Ribas contar como os funcionários do fisco norte-americano resolveram um problema com um formulário do IRS que os contribuintes tinham preenchido erradamente: preencheram-no eles e depois enviaram uma carta a cada um dos cidadãos a explicar como se fazia. O objectivo ali, entenda-se, era não privar as pessoas do seu retorno do IRS. O Estado ao serviço dos cidadãos, portanto, exactamente como deve ser.
Penso nisto e olho para os papéis que guardo em casa enviados pelas Finanças, o olho de boi do Estado: leio números, datas e siglas que não entendo e umas palavras com que nunca me cruzo e imagino um especialista em codificação de mensagens a fazer horas extraordinárias na Repartição do meu bairro.
Seja o que for que lá está escrito, o que se lê é um "Venha cá imediatamente!", que me deixa tão perturbada quanto a minha professora primária quando entrava na sala de aula com a Mariazinha na mão - uma rectângulo de madeira maciça que concentrava toda a pedagogia que sabia usar. Era um instrumento cuja finalidade primeira era inspirar culpa mesmo em quem não a tinha e medo sobretudo em quem não o sentia.
O mesmo vale para as cartas das Finanças e toda a sua magnífica opacidade. Não servem para explicar, mas para intimidar. Não convidam ao diálogo, forçam à obediência. Não são avisos amáveis, são ameaças veladas.
O Estado português não sabe falar com os cidadãos e isso, no limite, revela que não é composto por pessoas que pensam como cidadãos.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Mensagem à Sonae Turismo



Fui, durante anos, uma assídua frequentadora de Tróia e nem por isso me incomodava aquela atmosfera de vagarosa decadência que a península teve durante décadas, antes de vocês chegarem. Era um diamante velho mas ainda em bruto, uma jóia antiga e fora de moda, mas que se podia usar porque mantinha essa coisa inatingível que alguns lugares nunca perdem que é algo parecido com aquilo que nos humanos se chama personalidade.
Naturalmente, essa coisa indefenida não é fácil de retratar nas brochuras das agências de viagens ou de explicar aos clientes por parte dos operadores turísticos e por isso Tróia sempre esteve disponível para receber o outro lado do turismo de luxo, ou seja, as pessoas para quem o luxo é ter férias. E, de facto, Tróia foi um luxo fácil para muitos como eu.
Estive lá recentemente, já lá não ía há muito tempo. Fui sem ideias pré-concebidas, sempre soube que a poética desalinhada daquele lugar tinha os dias contados para a lógica simétrica e convencional do negócio do turismo. E não fiquei chocada com o que vi, apesar deste meu talento para apreciar o que fica depois (ou antes) das pessoas.
O que me leva a falar com vocês foi o que vi quando passei as fachadas das casas, deixei para trás os jardins e as vedações à volta das piscinas, percorri os estrados de madeira em direcção à areia e olhei à minha volta com os pés enterrados naquela água mansa - estava nas costas do anjo, mas o que vi não foram asas.
Foi lixo.
O que eu vi foi lixo.
Porque razão, pergunto, há espaço, entre tanto luxo, para tanto lixo?