terça-feira, 15 de junho de 2010

Batismo de cidadania vs banho de realidade





Imaginem um rapaz de 13 anos, magrinho e irrequieto, a entrar na Loja do Cidadão dos Restauradores. Vai levantar o seu primeiro Cartão do Cidadão. Está entusiasmado com o momento que está a viver, porque simbolicamente, o Cartão representa o primeiro instante de afirmação de sua identidade social.
Vai poder abrir uma conta bancária. Viajar para fora do país, mesmo para países longínquos. Passa a existir "como os adultos" em sociedade.
Vejam-no a passar os olhos pela sinalética do espaço, ansioso, à procura da placa Cartão do Cidadão.
Sobe as escadas a correr, depara-se com um aglomerado de pessoas com um ar apático, encostadas ao corrimão. Há crianças no chão e a chorar ao colo dos pais. Há idosos sentados e pessoas que lhe invejam a posição, mas como só há quatro bancos, se resignam a ir mudando de pé enquanto aguardam.
Olha para o lado e vê um espaço luminoso, amplo, limpo, com pelo menos sete funcionários com um ar competente a atender pessoas com gentileza e pensa: "Deve ser aqui". Aproxima-se. Não, é a EDP. Onde está o Estado português?
Está ali ao lado, num recanto com a jovialidade de uma funerária onde três sonolentas senhoras produzem uns vagos gestos de enfado perante uma plateia de olhares vazios que aguardam que mais um digito caia ao som da corneta. "67". Alguém se levanta, o rapaz dirige-se à máquina das senhas e carrega num botão. Sai o número 163. "163?". O rapaz olha incrédulo para o papel. Acaba de descobrir onde vai passar as primeiras horas da sua pré-condição de cidadão português.

Foram quase três horas de espera, ao longo das quais o deslumbramento deste novo cidadão se esvaiu lentamente como um velho balão de hélio. Quando os três dígitos mágicos finalmente se uniram no número desejado, o rosto animou-se num suspiro de alívio.
Cumpriu os rituais da sua entronização cívica com o sorriso apagado e saiu para a rua com a pressa de quem acaba de acordar de um pesadelo demasiado real.

2 comentários:

  1. Tens escrito pouco....posso cobrar-te mais ?? Afinal, não sendo eu seguidor de qualquer outro blog sinto-me no direito de exigir de quem alimenta o único que sigo com maior regularidade...
    Beijos,

    m)

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  2. Este é o verdadeiro Portugal dos Pequeninos!
    Os teus textos são viciantes, fica-se desejoso por mais, e mais...
    Bjs

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