quarta-feira, 19 de maio de 2010

Moro num país bipolar





Portugal é o caminho mais curto entre o melhor do futuro e o pior do passado. É o país dos 4 telemóveis por família e aquele em que o maior empregador é a burocracia. Tem a sua força laboral entregue a uma maioria de patrões que nunca completou o secundário, mas exporta uma alta percentagem dos cientistas que povoam os melhores laboratórios do mundo.
Aqui eu posso sair de casa, sentar-me numa esplanada de um jardim público, pedir um café, abrir o meu computador e ficar a navegar na net alegremente como se o wireless nascesse nas árvores; ou posso entrar numa Loja do Cidadão e encontrar-me, numa questão de segundos, a viver um filme de terror entre funcionários públicos entorpecidos por anos consecutivos de "és pago para fazer e não para pensar".
Se me pedissem para escolher uma instituição-síntese desta bipolaridade esquizofrénica, eu apontaria a primeira sala de audiências que encontrasse. Recorrer à justiça nacional é entrar no labirinto do Minotauro, para um sacrifício penoso e invariavelmente, inglório. É uma viagem de que ninguém sai incólume a um micro-cosmos de liturgias bafientas e prerrogativas sem escrutínio que insiste em comunicar com o mundo através de um dialecto inescrutável e, portanto, elitista.
Há dias pude ler, na íntegra, um parecer da Procuradoria-Geral da República sobre uma questão relativamente trivial relacionada com a obrigatoriedade dos livros de reclamações. Alguém, na PGR, produziu 42 (!) páginas de elípticas considerações legais tentado perscrutar o pensamento do legislador através das palavras que ele reuniu no preâmbulo e no corpo do decreto-lei.
Artigo a artigo, por vezes, palavra a palavra, o parecer é um extenuante exercício de interpretação semântica digno do mais purista dos linguistas, um rendilhado delirante de citações, remissões, excertos, enxertos. Arte de obstrução pura. Uma competentíssima inutilidade. Não há fio de Ariana que nos guie. Não há Teseu que nos salve.

2 comentários:

  1. A tua excelente prosa põe, mais uma vez, o que sentimos em palavras concretas. Claro, cru e directo.
    Esta peça lembrou-me um daqueles filmes que ficam: "Brasil, o outro lado do sonho". Uma sociedade ultra-burocrática num [possível] futuro e muito sombrio. Uma mescla de tecnologia de ponta com procedimentos e arrogâncias medievais (tal como tu descreves). Os heróis do filme tentam fugir de um big brother tentacular. Tudo é escuro, tudo é difícil. Qualquer semelhança com a realidade...
    AC

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  2. Continuas a escrever com alma.
    Carlos Feixa

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