segunda-feira, 10 de maio de 2010

Há ruas que só têm um lado


Ontem vi uma reportagem num telejornal de canal aberto sobre o esforço que a cidade da Covilhã estava a fazer para receber a selecção nacional a caminho de ali fazer um estágio: pintou passadeiras, arranjou passeios, alcatroou ruas. O trabalho jornalístico, inócuo e objectivo, era tecnicamente irrepreensível, mas passava completamente ao lado da pergunta incontornável que ficou por fazer: porque razão a Covilhã não fez as obras, pelos vistos necessárias, noutra altura. Ou, reformulando, porque razão foi preciso a selecção visitar a cidade para as fazer? O país autárquico está cheio até à náusea de exemplos destes: coisas bem feitas pelas razões erradas. Ou coisas apenas meio bem feitas.
Sempre procurei olhar para a cidade onde vivo como olho para as cidades onde sou estrangeira. Cá é como se dormisse de olhos abertos e o que vejo me convide a olhar para dentro, mais do que para fora. Lá fora, os meus olhos abrem-se como os de um doente saído de coma, que reencontra, mas não reconhece, naquilo que é estranho, o que lhe é familiar.
É com essa percepção limpa, aberta, livre da cegueira que vem do excesso de ver que às vezes me entretenho a olhar para Lisboa.
Sem essa miopia, consigo ver o quanto a organização da cidade reflecte a atenção selectiva que as entidades responsáveis dão aos espaços urbanos - porventura, a mesma distinção que fazem com as pessoas que os habitam.
Na Segunda Circular, por exemplo, uma das vias mais congestionadas de Lisboa, viver nas bermas deve ser um pesadelo. No entanto, é na aproximação ao Campo Grande que se repara que o pesadelo é amortecido para os que vivem do lado esquerdo (uma urbanização de luxo), mas não para os que vivem do lado direito (um bairro social/cooperativo), que não têm direito às barreiras de insonorização de que gozam os vizinhos da frente.
Na Avenida Brasília, cujo piso lembra uma rua libanesa, andaram recentemente homens e máquinas a tapar buracos e a espalhar uma nova membrana de alcatrão ao longo de uma parte do corredor. Qual parte? A parte que dá acesso ao Hotel Altis Belém e ao lado mais relevante turisticamente falando. O resto foi ignorado.
Nas cidades de algumas sociedades, há ruas que só têm um lado. Há autarcas que só têm uma forma de olhar para o espaço. E jornalistas que se esquecem de olhar para o mundo como se fossem estrangeiros.

1 comentário:

  1. Na mouche! É a visão orwelliana da nossa urbanidade. As ruas são todas iguais...
    Se fossemos mais estrangeiros cá dentro, estrangeiro na nossa capacidade de crítica, o outro lado da colina acabaria por ser tão verde como este lado.

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