quinta-feira, 8 de julho de 2010

Querida Matilde








Querida Matilde:

Escrevo-lhe hoje apesar de só a ter encontrado ontem para lhe dizer que lamento não a ter conhecido há mais tempo. Mas já sabe como é: os encontros mágicos entre os humanos são meras distracções de deuses inseguros, e portanto calhou eu ter chegado aqui no instante em que a Matilde se foi embora.

Ouvi-a dizer "Hoje, que posso olhar para longe, vejo que vivi com a poesia" e só esta frase magnífica deixou-me presa às suas palavras. Ouvia-falar da sua amizade de uma vida inteira com Maria Keil como uma menina de seis anos o faria. "Ainda hoje brincamos juntas. Ela é pura, rebelde". Também a ouvi falar de um homem "Sua Excelência, tão bonito, tão sofredor" e fiquei refém da forma como três palavras definem um perfil. Escutei as histórias de um tempo em que "o Campo Grande era, de facto, um grande campo" e o Vitorino Nemésio, angustiado com a escrita de Mau Tempo no Canal, lia excertos aos amigos debaixo das árvores e perguntava "o que é que vocês acham?".

Eu não fui uma das crianças que cresceu embalada pelas suas histórias, que, dizem-me, são a razão pela qual a literatura infantil é hoje vista sem ponta de condescendência. Mas mal posso esperar para descobrir a "estrada fascinante" que os seus livros propõem e os desenhos da Maria Keil ilustram.

Encontramos-nos lá?

(Homenagem a Matilde Rosa Araújo 1921-2010)

1 comentário: