quinta-feira, 8 de março de 2012

Quem toma conta dos que ficam para trás?

Na sequência de um conjunto de circunstâncias de vida algo trágicas vi-me na contingência de ter de ficar durante uns dias a prestar assistência à minha mãe que reside no Porto (eu vivo em Lisboa).
Nesta altura com 87 anos de idade, a minha mãe encontra-se com a mobilidade profundamente condicionada, por causa de uma recente fractura no fémur. Sucede ainda que o meu pai, com 84 anos, teve de ser internado para realizar uma cirurgia cardíaca.

Fiquei cinco dias sem trabalhar ao abrigo de uma figura de estilo chamada "
Assistência a Ascendentes". Digo figura de estilo, porque vim a descobrir que a declaração médica entregue na minha entidade patronal e na Segurança Social não serve para mais do que justificar a minha ausência - não há qualquer comparticipação prevista para as faltas ao emprego resultantes da necessidade de prestar assistência aos familiares mais velhos.
Nunca ao longo da minha já longa carreira profissional tive necessidade de recorrer a justificações deste género, pelo que não fazia a menor ideia de que neste meu país envelhecido, demograficamente decadente e a braços com uma crise de abandono imoral dos seus cidadãos reformados, prestar assistência aos pais e avós fosse considerada uma espécie de solidariedade de luxo em vez de um direito social e familiar elementar.

Não admira por isso, conforme vim a descobrir depois, que um grande número de pessoas invente uma gripe ou uma virose de cada vez que precisa de faltar ao trabalho para tomar conta dos seus mais velhos.

Temos assim que o Estado não faz, nem deixa fazer: não tem praticamente nada para oferecer aos muitos que, sem família ou recursos, aguardam o fim dos seus dias no mais pavoroso dos desamparos; e aos que têm família, candidata-os ao mesmo destino, por não considerar o apoio dos descendentes susceptível de qualquer incentivo.
Acho tristemente hilariantes os discursos dos que apelam à mobilidade profissional, à emigação, à capacidade de recomeçar noutro lado, sem confrontarem a questão nuclear: quem toma conta dos que ficam para trás?

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Mensagem ao homem da Moody's


anthony.thomas@moodys.com

Dear Mr. Anthony:

My name is Margarida Portugal, and I'm Portuguese.
I don't know you, but apparently you know me, my country, the way I live and the value of all things that we represent as a society, an economy, an identity.

You have the power - we actually pay you to have that power - to put a price tag on our country, banks and public institutions. So, as a contributor to your pay check, I want to tell you this:

As you probably know, we are going through a rough time.
I don't know if my government is paying you on time, but we have hundreds of thousands of jobless, penniless and homeless people struggling to make ends meat.

We have being doing it in a civic, orderly way, with calm, peaceful protests and civilized elections. We are now in the frontier of a new ordeal that will define our years to come. Probably, my son's future, like your son's future, will be define by this crisis.

So, I choose to be part of the solution, believing that things will change for the best, working to get there.

Where do you stand on this? How do you rank your work?
Is anyone putting a price tag on what you are doing?

I hope so.

Looking forward NOT to hear from you

Margarida Portugal

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Querida Matilde








Querida Matilde:

Escrevo-lhe hoje apesar de só a ter encontrado ontem para lhe dizer que lamento não a ter conhecido há mais tempo. Mas já sabe como é: os encontros mágicos entre os humanos são meras distracções de deuses inseguros, e portanto calhou eu ter chegado aqui no instante em que a Matilde se foi embora.

Ouvi-a dizer "Hoje, que posso olhar para longe, vejo que vivi com a poesia" e só esta frase magnífica deixou-me presa às suas palavras. Ouvia-falar da sua amizade de uma vida inteira com Maria Keil como uma menina de seis anos o faria. "Ainda hoje brincamos juntas. Ela é pura, rebelde". Também a ouvi falar de um homem "Sua Excelência, tão bonito, tão sofredor" e fiquei refém da forma como três palavras definem um perfil. Escutei as histórias de um tempo em que "o Campo Grande era, de facto, um grande campo" e o Vitorino Nemésio, angustiado com a escrita de Mau Tempo no Canal, lia excertos aos amigos debaixo das árvores e perguntava "o que é que vocês acham?".

Eu não fui uma das crianças que cresceu embalada pelas suas histórias, que, dizem-me, são a razão pela qual a literatura infantil é hoje vista sem ponta de condescendência. Mas mal posso esperar para descobrir a "estrada fascinante" que os seus livros propõem e os desenhos da Maria Keil ilustram.

Encontramos-nos lá?

(Homenagem a Matilde Rosa Araújo 1921-2010)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Rotinas



Take 1


Acordo todos os dias de manhã para uma rotina definida, para um dia bastante previsível. Sei onde vou estar desde o princípio do dia até ao meio da tarde. Tenho um emprego. Tenho um trabalho. Sei que no final do mês tenho um salário. Por causa disso, sei que não me vai faltar comida na mesa nem nenhum bem essencial. Sei que as minhas contas vão ser pagas e que tudo funcionará à minha volta se eu carregar nos botões certos: faço e recebo chamadas, encho e esvazio máquinas de roupa, tomarei banhos e a minha casa estará limpa e iluminada à noite. Andarei de carro para fazer compras e tratar de assuntos rotineiros. Terei tempo para dar passeios, almoçarei e jantarei fora algumas vezes, terei dinheiro para comprar livros e filmes e jornais, irei ao cinema várias vezes ao longo do mês, frequentarei o ginásio, há pelo menos um fim de semana em que sairei da cidade, porque preciso de ver mais mundo para conseguir aguentar a vida que tenho.

Take 2

Acordo todos os dias surpreendida por ter conseguido dormir, é um mistério para mim. Sonho muito ultimamente, os meus sonhos são as minhas idas ao cinema, há que tempos não compro um bilhete para ver um filme a sério. Obrigo-me a sair da cama, pouso os pés no chão e procuro os chinelos com os olhos ainda fechados. Demoro sempre um instante a abri-los, esta é uma das coisas que posso fazer, o luxo mínimo de quem não tem emprego. Faço isto todos os dias à mesma hora, a rotina ajuda a simular a normalidade, isso acalma um pouco este pânico morno que vive no meu estômago.
Começo aqui a contar os minutos até o sol se pôr. Decido neste instante o que vou fazer hoje: centro de emprego primeiro (não vou comer nada antes de sair, para não ficar agoniada como de costume); banco depois, o gerente diz que tenho a casa por um fio (desta vez não vou deixar que ele fale comigo com aquele tom); compras no mini-preço (não posso esquecer de levar os papéis dos descontos); casa à tarde, os homens da EDP vêem desligar a luz (de certeza que vou chorar).

Amanhã é sábado, vai ser mais fácil. Vou sair de casa cedo para evitar os vizinhos e vou caminhar até aquele monte e vou subi-lo mesmo até ao topo e vou ficar lá sentada até o frio me mandar embora.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Batismo de cidadania vs banho de realidade





Imaginem um rapaz de 13 anos, magrinho e irrequieto, a entrar na Loja do Cidadão dos Restauradores. Vai levantar o seu primeiro Cartão do Cidadão. Está entusiasmado com o momento que está a viver, porque simbolicamente, o Cartão representa o primeiro instante de afirmação de sua identidade social.
Vai poder abrir uma conta bancária. Viajar para fora do país, mesmo para países longínquos. Passa a existir "como os adultos" em sociedade.
Vejam-no a passar os olhos pela sinalética do espaço, ansioso, à procura da placa Cartão do Cidadão.
Sobe as escadas a correr, depara-se com um aglomerado de pessoas com um ar apático, encostadas ao corrimão. Há crianças no chão e a chorar ao colo dos pais. Há idosos sentados e pessoas que lhe invejam a posição, mas como só há quatro bancos, se resignam a ir mudando de pé enquanto aguardam.
Olha para o lado e vê um espaço luminoso, amplo, limpo, com pelo menos sete funcionários com um ar competente a atender pessoas com gentileza e pensa: "Deve ser aqui". Aproxima-se. Não, é a EDP. Onde está o Estado português?
Está ali ao lado, num recanto com a jovialidade de uma funerária onde três sonolentas senhoras produzem uns vagos gestos de enfado perante uma plateia de olhares vazios que aguardam que mais um digito caia ao som da corneta. "67". Alguém se levanta, o rapaz dirige-se à máquina das senhas e carrega num botão. Sai o número 163. "163?". O rapaz olha incrédulo para o papel. Acaba de descobrir onde vai passar as primeiras horas da sua pré-condição de cidadão português.

Foram quase três horas de espera, ao longo das quais o deslumbramento deste novo cidadão se esvaiu lentamente como um velho balão de hélio. Quando os três dígitos mágicos finalmente se uniram no número desejado, o rosto animou-se num suspiro de alívio.
Cumpriu os rituais da sua entronização cívica com o sorriso apagado e saiu para a rua com a pressa de quem acaba de acordar de um pesadelo demasiado real.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Cidades invisíveis em cápsulas do tempo



Li ontem que uma das iniciativas do FITEI deste ano é dar o nome de um cidadão anónimo a uma rua da cidade do Porto
. Por instantes, encontrei na realidade urbana do Porto um vislumbre daquela engenhosa e arrojada criatividade que me habituei a admirar nos catalães, mestres na arte de fazer uma cidade respirar através dos pulmões dos que lá vivem.

Exemplo I

Recentemente, perante a contingência de ter de alterar o traçado da carismática Via Diagonal, fizeram o impensável: puseram o assunto à consulta pública. Em vez de se encerrarem em gabinetes camarários produzindo sigilosas cogitações sobre o que poderia vir a ser o futuro da cidade e dos seus cidadãos, deixando cair, aqui e ali, umas misteriosas dicas jornalísticas sobre o que estava a acontecer nos corredores do poder, decidiram perguntar às pessoas o que é que elas queriam.
Um exercício admirável de democracia urbanística: o espaço é público, a decisão também. Criaram um site com duas propostas possíveis de traçado, disponibilizaram informação, construíram cenários com as várias hipóteses. E pediram às pessoas para votar. Não houve economia na polémica, nem fuga da opinião: defensores, detractores, urbanistas, arquitectos e simples cidadãos cruzaram argumentos, criaram campanhas de rua, escreveram-se longas prosas com adjectivos gordos, os jornais abriram-se às réplicas e tréplicas dos comentadores e analistas, uma trepidação cívica invadiu a cidade.

Exemplo II

No momento em que escrevo este texto, os cidadãos de Barcelona estão a escrever mensagens sobre a sua cidade para enviarem para o futuro numa cápsula do tempo que só vai ser aberta em 2159.
Conseguem imaginar? Algures, dentro de século e meio, quanto todos formos passado, numa cidade digna de um delírio de Italo Calvino, os ainda não nascidos habitantes de Barcelona vão saber como é que os seus conterrâneos imaginavam o lugar onde eles então vivem. Magistral projecção de vida, sublime ensaio de imortalidade, a cápsula do tempo do povo de Barcelona é, na verdade, um diálogo intemporal sobre as ficções que uma cidade inspira nos seus habitantes. Sabemos nós amar assim uma cidade?

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Moro num país bipolar





Portugal é o caminho mais curto entre o melhor do futuro e o pior do passado. É o país dos 4 telemóveis por família e aquele em que o maior empregador é a burocracia. Tem a sua força laboral entregue a uma maioria de patrões que nunca completou o secundário, mas exporta uma alta percentagem dos cientistas que povoam os melhores laboratórios do mundo.
Aqui eu posso sair de casa, sentar-me numa esplanada de um jardim público, pedir um café, abrir o meu computador e ficar a navegar na net alegremente como se o wireless nascesse nas árvores; ou posso entrar numa Loja do Cidadão e encontrar-me, numa questão de segundos, a viver um filme de terror entre funcionários públicos entorpecidos por anos consecutivos de "és pago para fazer e não para pensar".
Se me pedissem para escolher uma instituição-síntese desta bipolaridade esquizofrénica, eu apontaria a primeira sala de audiências que encontrasse. Recorrer à justiça nacional é entrar no labirinto do Minotauro, para um sacrifício penoso e invariavelmente, inglório. É uma viagem de que ninguém sai incólume a um micro-cosmos de liturgias bafientas e prerrogativas sem escrutínio que insiste em comunicar com o mundo através de um dialecto inescrutável e, portanto, elitista.
Há dias pude ler, na íntegra, um parecer da Procuradoria-Geral da República sobre uma questão relativamente trivial relacionada com a obrigatoriedade dos livros de reclamações. Alguém, na PGR, produziu 42 (!) páginas de elípticas considerações legais tentado perscrutar o pensamento do legislador através das palavras que ele reuniu no preâmbulo e no corpo do decreto-lei.
Artigo a artigo, por vezes, palavra a palavra, o parecer é um extenuante exercício de interpretação semântica digno do mais purista dos linguistas, um rendilhado delirante de citações, remissões, excertos, enxertos. Arte de obstrução pura. Uma competentíssima inutilidade. Não há fio de Ariana que nos guie. Não há Teseu que nos salve.